No poder há 40 anos, síndica do Edifício JK exige caução de R$ 4 milhões de concorrentes
Figura quase folclórica é chamada por alguns moradores de “Dama de Ferro do JK”.
Quatro milhões de reais. Este é o valor da caução a ser paga por quem quiser se candidatar a síndico do edifício JK, no bairro Santo Agostinho, na região Centro-Sul de Belo Horizonte. O valor foi imposto em 2020 pela síndica do condomínio, Maria Lima das Graças, que, neste ano, completou quatro décadas à frente dos dois prédios de 23 e 36 andares onde, segundo o Censo de 2022, vivem 999 pessoas. Segundo alguns desses moradores, a medida veio como forma de afastar qualquer concorrência e seria somente mais uma das “arbitrariedades” da mulher, chamada de “Dama de Ferro do JK”.
No início de outubro, o prédio desenhado por Oscar Niemeyer foi centro de uma polêmica após os moradores serem surpreendidos com a exigência de o condomínio ser pago com dinheiro em espécie. O problema com o pagamento já teria sido solucionado, com a volta da emissão de boletos para os moradores.
O TEMPO conversou com diversos moradores, que, temendo a abertura de processos na Justiça pela síndica, preferiram não se identificar. Eles contam que o receio vem do fato de que quem questiona a síndica acaba virando alvo de advogados do próprio condomínio. A situação é denunciada há pelo menos 20 anos, sendo assunto de diversas reportagens e até mesmo de uma audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Porém, segundo as denúncias dos moradores, a exigência do cheque milionário para se candidatar a síndico aconteceu em 2020, quando um pequeno grupo de moradores se juntou para tentar colocar fim à hegemonia da síndica.
“Esses moradores debateram por um ano para ter uma proposta consistente, buscando informações sobre o prédio, mas tudo de maneira autônoma, pois o condomínio não dá nenhuma informação para ninguém. Como que você tem uma chapa, mas não pode saber quantos moradores tem no prédio; não pode, por exemplo, mandar uma carta para as pessoas, pois aqui é proibido? Foi aí que ela colocou essa cláusula com a questão do cheque caução de R$ 4 milhões. Mas, apesar de ela ter ganhado, entre aspas, mais uma vez, ela mesma não pagou esse valor”, denuncia um dos moradores ouvidos. As aspas, segundo ele, se justificam porque a eleição não tem contagem de votos, já que é feita com base na “intensidade dos gritos” dos moradores presentes na assembleia.
O TEMPO tentou contato com a síndica diversas vezes ao longo de outubro deste ano, não sendo possível localizá-la no edifício em nenhuma das situações. Nessa terça-feira, foi feita mais uma tentativa de contato, mas sem sucesso. Questionamentos também foram enviados para um e-mail indicado por funcionários, mas, até a publicação da reportagem, o condomínio não tinha se manifestado sobre as denúncias dos moradores.
Após a publicação da matéria, já na quinta-feira (21 de novembro), depois de nova tentativa por telefone a reportagem conseguiu contato com o advogado Faiçal Assray. Por nota, o defensor afirma que a denúncia acerca da estipulação do caução é "caluniosa", uma vez que, segundo a defesa do condomínio, ela está prevista no Estatuto e em Ata aprovada em Assembleia do condomínio. "A síndica já está tomando as medidas legais para se ver reparada das acusações das matérias veiculadas. A exigência da caução nunca partiu dela", diz o texto.
Acerca das denúncias de falta de transparência, o advogado Faiçal Assray diz que trata-se de informações "inverídicas". "Os números do condomínio sempre estiveram à disposição (na forma da lei, e estatuto), inclusive sendo aprovados em Assembleia. Tais acusações são fruto de ambição política da oposição, que não tem votos para eleger o síndico da preferência da mesma. A síndica é reiteradamente eleita, por ter seu trabalho admirado e reconhecido pela grande maioria dos moradores", escreveu.
Por fim, sobre as acusações de "assédio jurídico" contra aqueles que questionam as ações da síndica, o defensor do condomínio argumentou que qualquer calúnia, injúria e acusações inverídicas "podem e devem ser alvo de responsabilização judicial". "A oposição, que não tem votos, se deseja não responder por seus atos, deveria moralizar sua conduta", conclui a nota.
Condomínio arrecada R$ 700 mil por mês
Com 30% de seus 1.103 apartamentos vagos e um condomínio que pode variar de R$ 260 a cerca de R$ 1.400, a administração do edifício arrecada cerca de R$ 700 mil todos os meses. Segundo outro condômino ouvido por O TEMPO, uma questão muito questionada por eles é a falta de transparência. “Não há reuniões, não temos acesso à prestação detalhada das contas, então não sabemos em que o dinheiro é gasto. A prestação que existe é uma folha afixada na entrada dos dois prédios que diz a arrecadação total e o valor das despesas com funcionários. Mas não sabemos quantos funcionários são, quanto eles ganham, nada”, pondera outra moradora, que chegou há poucos anos ao condomínio.
“É muito dinheiro, e a gente não vê sendo aplicado. Tem um elevador que não funciona há quase dez anos; os outros toda hora estragam. Vivo aqui com medo, pela falta de manutenção”, pontua um morador.
Especialista diz que exigência pode ser considerada abusiva
O advogado especialista em direito imobiliário Marcelo Mantuano afirma que a exigência de caução de R$ 4 milhões para concorrer ao cargo de síndico pode ser considerada “abusiva”.
“Isso só poderia ser exigido se estivesse expressamente previsto na convenção do condomínio, o que é pouco provável que esteja. Se não estiver, é uma exigência ilegal, que não pode acontecer, pois se torna uma barreira de entrada para todos os condôminos”, defende.
Segundo ele, o máximo que pode ocorrer é o afastamento da candidatura de um morador inadimplente. “Fora isso, me parece uma exigência ilegal. Não é normal um síndico ficar 40 anos à frente de um prédio. É importante ter alternância até para não ficar aquela sensação de um síndico ser dono do empreendimento”, completa.
Ele explica ainda que a exigência do pagamento do condomínio em dinheiro não é ilegal, mas não é razoável, já que a movimentação de grandes volumes de dinheiro em espécie é até mesmo restrita pela legislação do Banco Central. “Manejar grandes recursos dificulta justamente a prestação de contas, que é um dever do síndico”.
O promotor Fabrício Costa Lopo, do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), explica que o órgão só pode agir em questões que tratem da preservação do projeto arquitetônico original de Oscar Niemeyer e a segurança dos moradores. “Mas não há nada que impeça os moradores de formar um grupo de inconformados para procurar o Poder Judiciário sobre a situação”, diz. A Polícia Civil informou que, com base nas informações repassadas, não foi possível localizar registro de ocorrência policial relacionado ao nome da síndica.
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